Olhar-bisturi-por-favor
Beatriz poderia ter o sorriso largo como destaque. Aberto, flagrante, curvilíneo, desenhado com cuidado entre as maçãs de sua face, revelando dentes harmoniosamente femininos. Encantador. Aliás, essa característica poderia ter 100% de citação em uma pesquisa espontânea realizada entre homens sobre o que mais lhes chamava a atenção no rosto de Beatriz. Poderia, se não fosse por Julio.
Ele destoaria na pesquisa. Para ele, o sorriso de Bia era sim muito belo, até convidativo. Porém o que mais o intrigava naquela mulher eram seus olhos castanhos, olhos grandes e levemente puxados, olhos que poderiam ter sido única e suficiente inspiração de Shotaro Ishinomori, rei dos mangás, ao criar seus desenhos. Mas mais que aqueles contornos debuxados com esmero, o que o desconcertava era o que estava por trás, um mistério esfíngico difícil de ser percebido, longe de ser desvendado.
“Olha pra mim”.
Julio pediu, Bia olhou. Meio intrigada, totalmente querendo saber o porquê daquilo. Foi um olhar rápido, no curto tempo para abrir um sorriso sem graça. Ela desviou os olhos para a esquerda. Depois, para baixo.
“Obrigado”.
“Por que isso?”
“Porque seus olhos são fantásticos.”
As maçãs do rosto dela começaram a amadurecer.
“Eles não têm nada de mais”.
“Têm sim. Mas eu não preciso tentar te convencer disso. Eu olho para eles e sei disso. Ah, talvez você também saiba, só não queira admitir”.
Com as faces rubras e febris de Lilly Braun ela pediu que mudasse de assunto. Ele mudou, até porque não ousava ir além. Um reluzente anel prateado na mão esquerda dela o intimidava e ele a respeitava. Mas, apesar de controlar a boca, não conseguia controlar seus próprios pensamentos, que lhe tiraram o sono naquela mesma noite. Levantou da cama e se rendeu a um poderoso relaxante muscular que certamente o derrubaria.
Dormir foi muito pior. Aqueles olhos apareceram grandes, enormes, colossais, em sonhos que misturavam paixão e terror. Por outro lado, o tormento pré e pós-sono o fizeram acordar com versos na cabeça, rapidamente registrados em um bloquinho que Julio providencialmente mantinha no criado mudo. Não era um poema, mas uma letra de música, o que o fez rir ao pensar que ficaria bem como quinto integrante dos Beatles, se tivesse nascido em data e local convenientes: se Paul despertara com a melodia de Yesterday na cabeça, cabia-lhe um letrista com o mesmo dom, considerando-se que os primeiros versos iniciais da canção foram “scrambled eggs / oh my baby how I love your legs”.
No dia seguinte, enviou a ela, por e-mail, a letra e os pedidos antecipados de desculpas, jurando que não era uma cantada. Seria uma inspiração, apenas.
Ela entendeu e, mesmo sabendo que não se tratava de uma cantada, calculou que, se assim o fosse funcionaria muito bem. De fato, já havia funcionado. Ela já não andava tão bem com um namorado e aquele gesto despretensioso de Julio havia sido o estopim. Nunca haviam feito algo como aquilo para ela.
De: Julio
Para: Beatriz
Bia,
Desculpe a ousadia. Juro que não é cantada. Mas seu olhar me rendeu uma noite mal dormida e uma letra de música, que transcrevo abaixo.
Bj
Julio
- A princesa e o dragão
- As estrelas lá do céu
- A princesa e o dragão
- O unicórnio e os olhos daquela menina
- Todos obras de suas mãos
- Tem gente que nunca viu
- Tem gente que nunca vai ver
- Tem gente que prefere crer
- Há quem duvide por princípio
- Quem creia apenas no princípio
- Mas eu simplesmente sei: ela olhou pra mim
- Aqueles olhos nos meus olhos
- Não me deixam dormir a me atormentar
- Será que ela olhou pra mim? (No way!)
- Aqueles olhos nos meus olhos
- Não me deixam acordar, vivo a sonhar
- Ela olhou pra mim, ela olhou pra mim... Eu sei
- Foi como olhar um espelho
- Só que sem refletir
- Fui deixando pra trás suas órbitas
- À minha direita sonhos, à esquerda desilusões
- Pra trás o passado e lá no fundo... eu
- Tem gente que nunca viu
- Tem gente que nunca vai ver
- Tem gente que prefere crer
- Há quem duvide por princípio
- Quem creia apenas no princípio
- Mas eu simplesmente sei: ela olhou pra mim
- Aqueles olhos nos meus olhos
- Não me deixam dormir a me atormentar
- Será que ela olhou pra mim? (No way!)
- Aqueles olhos nos meus olhos
- Não me deixam acordar, vivo a sonhar
- Ela olhou pra mim, daquele jeito... Eu sei
- (Trecho narrado)
- Ela olhou pra mim daquele jeito
- Me olhou com aquele olhar meio sem jeito
- Não um simples olhar, mas um olhar-anestesia
- Olhar-bisturi-por-favor
- Olhar-cirúrgico, cardíaco sabe?
- Olhar-cardiovascular
- Me olhou com aquele olhar que brilha como Hatori Hanzo antes da degola
- Sem pretensões suicidas, eu que sei
- Mas a egípcia Íris me devora, e me consome
- E me dá fome
- Alimenta meu vício, com esse olhar-pão, olhar-ópio
- Dá-me de comer, de beber
- Não, dá-me apenas de ver
- Digam o que quiserem, riam nos montes, sussurrem nas alcovas
- Só EU sei o jeito que ela olhou pra mim...
Nota: a letra da música é autoria de Vitor Martinez e o texto é como um trabalho de engenharia reversa submerso em criatividade. Com esse post, comemoro ter internet novamente em casa , na confiança em que os post serão, pelo menos, semanais.