quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Elmolhado

O grão de areia é estéril. Pelo menos foi isso que sempre ouviu dos outros grãos de areia. E olha que não são poucos que ele conhece. Sempre sendo levado pelo vento de um lado para o outro, independente de sua vontade. Esse fator é conhecido entre os grãos de areia do deserto como moeda. Afinal, tem seu lado bom e ruim. O bom é que, por vezes, quando rodeado por grãos briguentos ou chatos os sopros lhe poderiam levar para um lugar mais sossegado. O ruim é que, por vezes, em tais situações eles teimavam em aparecer ou, apareciam no melhor da festa e espalhavam os felizes dissipando a felicidade.

A comunidade dos grãos de areia do deserto é repleta de mitos e memórias de antigos que ninguém nunca viu. Grãos que teriam vivido por ali tempos atrás, que deixaram suas histórias ali e há muito foram soprados pra só Deus sabe onde. Essas lendas falavam a respeito da alegria e felicidade que a água trazia. As noites de lua cheia eram as favoritas. Eram nelas que os grãos mais velhos se animava a contar tais histórias - essa é uma tradição encontrada em todo o deserto. Eles falavam sobre a alegria e fertilidade trazida pela água. Segundo consta, água é uma substância suave, gelada e que provoca arrepios. Os anciãos dizem que são esses arrepios que provocam a vida. Dizem que em alguns lugares há tanta água que os seres se locomovem através dela, sem nem sequer tocar os grãos; estes apenas assistem a dança desses bailarinos chamados de peixes. Apesar de linda, essa estória encontra pouca credibilidade dentro da comunidade. Se houvesse tanta água assim, certamente ela chegaria até ela!

Mas quase todos crêem na existência de rios. Sim, eles cortam longas porções de terra e mesmo os grãos que não estão à sua margem sentem o prazer trazido pela água. Os animais caminham de um lado para outro, cuidam de suas famílias, buscam alimento e renovam sua juventude bebendo do rio. Certamente eles se arrepiam com ela. Sim, eles não são estéreis.

É isso mesmo! Quase ninguém acredita em peixes, quase todos acreditam em rios mas existem aqueles que duvidam de tudo isso. Isso ocorre porque há um boato que a água se parece com o xixi dos animais. Só que não é tão quente e não tem aquele gosto e cheiro terríveis. É bem verdade que receber uma esguichada de um xixizinho de lagarto pode ser muito refrescante durante um banho de sol escaldante. Outro fator que promove a descrença é: Por que alguns grãos de areia seriam privilegiados com a água e outros passariam toda sua existência à mercê do sol e dos ventos, tendo como atenuante fétidos excrementos de animais? Se realmente há essa infinidade de água, por que nunca se viu no deserto nem um grão dela?

O fato é que, sendo mito ou realidade, os grãos não possuem patas ou asas, o que lhes impede de buscar livremente seu lendário Elmolhado. Os que têm fé - e talvez até os que não têm - rezam para se enroscarem em algum viajante, ou para que os ventos os levem de encontro a esse paraíso. Enquanto aguardam essa incerta realização, uns sobrevivem com uma esperança que nunca se concretiza e outros com a amargura de, contra sua vontade, terem sido separado para compor paisagem tão inóspita.

Isso tudo, claro, referente àqueles que estão agitados e se mantêm à superfície. Há aqueles que se cansaram da movimentação e da interminável espera. Esses estão nas profundezas, soterrados, escondidos na escuridão. Otimistas irremediáveis afirmam que quanto mais descem, mais perto do Elmolhado estão.

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