quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Olhar-bisturi-por-favor

Beatriz poderia ter o sorriso largo como destaque. Aberto, flagrante, curvilíneo, desenhado com cuidado entre as maçãs de sua face, revelando dentes harmoniosamente femininos. Encantador. Aliás, essa característica poderia ter 100% de citação em uma pesquisa espontânea realizada entre homens sobre o que mais lhes chamava a atenção no rosto de Beatriz. Poderia, se não fosse por Julio.

Ele destoaria na pesquisa. Para ele, o sorriso de Bia era sim muito belo, até convidativo. Porém o que mais o intrigava naquela mulher eram seus olhos castanhos, olhos grandes e levemente puxados, olhos que poderiam ter sido única e suficiente inspiração de Shotaro Ishinomori, rei dos mangás, ao criar seus desenhos. Mas mais que aqueles contornos debuxados com esmero, o que o desconcertava era o que estava por trás, um mistério esfíngico difícil de ser percebido, longe de ser desvendado.

“Olha pra mim”.

Julio pediu, Bia olhou. Meio intrigada, totalmente querendo saber o porquê daquilo. Foi um olhar rápido, no curto tempo para abrir um sorriso sem graça. Ela desviou os olhos para a esquerda. Depois, para baixo.

“Obrigado”.

“Por que isso?”

“Porque seus olhos são fantásticos.”

As maçãs do rosto dela começaram a amadurecer.

“Eles não têm nada de mais”.

“Têm sim. Mas eu não preciso tentar te convencer disso. Eu olho para eles e sei disso. Ah, talvez você também saiba, só não queira admitir”.

Com as faces rubras e febris de Lilly Braun ela pediu que mudasse de assunto. Ele mudou, até porque não ousava ir além. Um reluzente anel prateado na mão esquerda dela o intimidava e ele a respeitava. Mas, apesar de controlar a boca, não conseguia controlar seus próprios pensamentos, que lhe tiraram o sono naquela mesma noite. Levantou da cama e se rendeu a um poderoso relaxante muscular que certamente o derrubaria.

Dormir foi muito pior. Aqueles olhos apareceram grandes, enormes, colossais, em sonhos que misturavam paixão e terror. Por outro lado, o tormento pré e pós-sono o fizeram acordar com versos na cabeça, rapidamente registrados em um bloquinho que Julio providencialmente mantinha no criado mudo. Não era um poema, mas uma letra de música, o que o fez rir ao pensar que ficaria bem como quinto integrante dos Beatles, se tivesse nascido em data e local convenientes: se Paul despertara com a melodia de Yesterday na cabeça, cabia-lhe um letrista com o mesmo dom, considerando-se que os primeiros versos iniciais da canção foram “scrambled eggs / oh my baby how I love your legs”.

No dia seguinte, enviou a ela, por e-mail, a letra e os pedidos antecipados de desculpas, jurando que não era uma cantada. Seria uma inspiração, apenas.

Ela entendeu e, mesmo sabendo que não se tratava de uma cantada, calculou que, se assim o fosse funcionaria muito bem. De fato, já havia funcionado. Ela já não andava tão bem com um namorado e aquele gesto despretensioso de Julio havia sido o estopim. Nunca haviam feito algo como aquilo para ela.

E nem se tratava de uma letra de música. Ela queria alguém que realmente mergulhasse em seu olhar.

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De: Julio

Para: Beatriz

Bia,

Desculpe a ousadia. Juro que não é cantada. Mas seu olhar me rendeu uma noite mal dormida e uma letra de música, que transcrevo abaixo.

Bj

Julio

  • A princesa e o dragão
  • As estrelas lá do céu
  • A princesa e o dragão
  • O unicórnio e os olhos daquela menina
  • Todos obras de suas mãos

  • Tem gente que nunca viu
  • Tem gente que nunca vai ver
  • Tem gente que prefere crer
  • Há quem duvide por princípio
  • Quem creia apenas no princípio
  • Mas eu simplesmente sei: ela olhou pra mim

  • Aqueles olhos nos meus olhos
  • Não me deixam dormir a me atormentar
  • Será que ela olhou pra mim? (No way!)
  • Aqueles olhos nos meus olhos
  • Não me deixam acordar, vivo a sonhar
  • Ela olhou pra mim, ela olhou pra mim... Eu sei

  • Foi como olhar um espelho
  • Só que sem refletir
  • Fui deixando pra trás suas órbitas
  • À minha direita sonhos, à esquerda desilusões
  • Pra trás o passado e lá no fundo... eu

  • Tem gente que nunca viu
  • Tem gente que nunca vai ver
  • Tem gente que prefere crer
  • Há quem duvide por princípio
  • Quem creia apenas no princípio
  • Mas eu simplesmente sei: ela olhou pra mim

  • Aqueles olhos nos meus olhos
  • Não me deixam dormir a me atormentar
  • Será que ela olhou pra mim? (No way!)
  • Aqueles olhos nos meus olhos
  • Não me deixam acordar, vivo a sonhar
  • Ela olhou pra mim, daquele jeito... Eu sei

  • (Trecho narrado)
  • Ela olhou pra mim daquele jeito
  • Me olhou com aquele olhar meio sem jeito
  • Não um simples olhar, mas um olhar-anestesia
  • Olhar-bisturi-por-favor
  • Olhar-cirúrgico, cardíaco sabe?
  • Olhar-cardiovascular
  • Me olhou com aquele olhar que brilha como Hatori Hanzo antes da degola
  • Sem pretensões suicidas, eu que sei
  • Mas a egípcia Íris me devora, e me consome
  • E me dá fome
  • Alimenta meu vício, com esse olhar-pão, olhar-ópio
  • Dá-me de comer, de beber
  • Não, dá-me apenas de ver
  • Digam o que quiserem, riam nos montes, sussurrem nas alcovas
  • Só EU sei o jeito que ela olhou pra mim...

Nota: a letra da música é autoria de Vitor Martinez e o texto é como um trabalho de engenharia reversa submerso em criatividade. Com esse post, comemoro ter internet novamente em casa , na confiança em que os post serão, pelo menos, semanais.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Elmolhado

O grão de areia é estéril. Pelo menos foi isso que sempre ouviu dos outros grãos de areia. E olha que não são poucos que ele conhece. Sempre sendo levado pelo vento de um lado para o outro, independente de sua vontade. Esse fator é conhecido entre os grãos de areia do deserto como moeda. Afinal, tem seu lado bom e ruim. O bom é que, por vezes, quando rodeado por grãos briguentos ou chatos os sopros lhe poderiam levar para um lugar mais sossegado. O ruim é que, por vezes, em tais situações eles teimavam em aparecer ou, apareciam no melhor da festa e espalhavam os felizes dissipando a felicidade.

A comunidade dos grãos de areia do deserto é repleta de mitos e memórias de antigos que ninguém nunca viu. Grãos que teriam vivido por ali tempos atrás, que deixaram suas histórias ali e há muito foram soprados pra só Deus sabe onde. Essas lendas falavam a respeito da alegria e felicidade que a água trazia. As noites de lua cheia eram as favoritas. Eram nelas que os grãos mais velhos se animava a contar tais histórias - essa é uma tradição encontrada em todo o deserto. Eles falavam sobre a alegria e fertilidade trazida pela água. Segundo consta, água é uma substância suave, gelada e que provoca arrepios. Os anciãos dizem que são esses arrepios que provocam a vida. Dizem que em alguns lugares há tanta água que os seres se locomovem através dela, sem nem sequer tocar os grãos; estes apenas assistem a dança desses bailarinos chamados de peixes. Apesar de linda, essa estória encontra pouca credibilidade dentro da comunidade. Se houvesse tanta água assim, certamente ela chegaria até ela!

Mas quase todos crêem na existência de rios. Sim, eles cortam longas porções de terra e mesmo os grãos que não estão à sua margem sentem o prazer trazido pela água. Os animais caminham de um lado para outro, cuidam de suas famílias, buscam alimento e renovam sua juventude bebendo do rio. Certamente eles se arrepiam com ela. Sim, eles não são estéreis.

É isso mesmo! Quase ninguém acredita em peixes, quase todos acreditam em rios mas existem aqueles que duvidam de tudo isso. Isso ocorre porque há um boato que a água se parece com o xixi dos animais. Só que não é tão quente e não tem aquele gosto e cheiro terríveis. É bem verdade que receber uma esguichada de um xixizinho de lagarto pode ser muito refrescante durante um banho de sol escaldante. Outro fator que promove a descrença é: Por que alguns grãos de areia seriam privilegiados com a água e outros passariam toda sua existência à mercê do sol e dos ventos, tendo como atenuante fétidos excrementos de animais? Se realmente há essa infinidade de água, por que nunca se viu no deserto nem um grão dela?

O fato é que, sendo mito ou realidade, os grãos não possuem patas ou asas, o que lhes impede de buscar livremente seu lendário Elmolhado. Os que têm fé - e talvez até os que não têm - rezam para se enroscarem em algum viajante, ou para que os ventos os levem de encontro a esse paraíso. Enquanto aguardam essa incerta realização, uns sobrevivem com uma esperança que nunca se concretiza e outros com a amargura de, contra sua vontade, terem sido separado para compor paisagem tão inóspita.

Isso tudo, claro, referente àqueles que estão agitados e se mantêm à superfície. Há aqueles que se cansaram da movimentação e da interminável espera. Esses estão nas profundezas, soterrados, escondidos na escuridão. Otimistas irremediáveis afirmam que quanto mais descem, mais perto do Elmolhado estão.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Valeu Malandragem!

Pronto, já passou! As manchetes mudaram!
A Globonews agora trata do anúncio da NASA de que há outras formas de vida (na terra). No boteco o papo é o Campeonato Brasileiro - com mais torcedores do Fluminense em São Paulo do que no Rio de Janeiro. As pessoas estão preocupadas com o amigo secreto, com seus planos para o Natal e Ano Novo. Falando nisso, se eu fosse da indústria de brinquedos criaria os hominhos do BOPE, estilo G.I. Joe. Ia ser a grande febre da molecada neste fim de ano. Também daria pra fazer os vilões: Fernandinho Beira Mar, Elias Maluco, Zeu etc.

A criançada ficaria feliz, minha indústria ganharia muito dinheiro, eu conseguiria fazer a economia girar. As lojas precisariam de mais vendedores, assim, mais pessoas receberiam salário. Mais assalariados seriam mais consumidores do BO.PE. Joe.

E tudo isso se possível fosse só assim seria graças aos traficantes. Todo esse bem econômico, se tangível, seria fruto da mente doentia dos meliantes. Internada em hotéis de segurançamáxima a cúpula da bandidagem revelou-se megalomaníaca - vamos iluminar a cidade do Rio de Janeiro. Talvez a inspiração tenha vindo da Idade Média quando, em plena Inquisição, as ruas eram iluminadas por corpos em chamas. Sim, os malucos resolveram queimar ônibus e carros de trabalhadores por ai.

Ah, mas que grande ideia! Que grande benefício para a sociedade - especialmente para os moradores das favelas. Pense comigo: não fora esse surto do comando do Comando, as coisas permaneceriam como sempre foram. O tráfico continuaria a todo vapor, as armas e atrocidades ainda seriam rotinas nos morros hoje ocupados pelo Estado.

Após tantos desserviços e maldades, enfim uma contribuição social.

Valeu Malandragem!