quinta-feira, 10 de março de 2011

Som de liberdade

(se o ano começa depois do Carnaval, o Balelas e Abobrinhas segue o calendário. Aqui está o primeiro post do ano. Feliz 2011.)
Durante anos foi a mesma coisa. Raquel ficou sem olhar para o lado. Aliás, para quaisquer lados, para cima ou para baixo, para onde quer que não fosse a face de seu namorado. Não que ela tivesse alguma segunda intenção em olhar ao redor para ver o movimento, mas mesmo checar a fonte de uma casual conversa sem pé nem cabeça na mesa atrás dela no restaurante era proibido.
A realidade daquele casal era tão imersa no ciúmes de Tato que, para Raquel, todas ações que seriam consideradas absurdas por observadores alheios eram plenamente naturais. Todas. Até mesmo aquela ligação para confirmar que ela chegara em casa entre 10 e 12 minutos depois de ter saído da casa dele - sempre, sempre do telefone fixo. Ou então as ligações que ele fazia para o fixo da casa dela na madrugada, para ver se ela atenderia. Tudo normal.
Ela também já não estranhava mais a censura imposta por ele aos porta-retratos de sua casa, onde vez ou outra apareciam seus irmãos, sempre junto à família, em ocasiões de viagens e festas. Olhar uma dessas fotos chegou até mesmo a ser motivo para um dos incontáveis fins do namoro, sempre reatados horas depois do rompimento.
Não adiantava avisar. A melhor amiga tentou, a irmã e até a mãe, que não gostava de interferir nesses assuntos, deu leves conselhos. Raquel sabia que só ela estava dentro da relação e só ela sabia ver as coisas como ela realmente eram.
Sem mesmo se dar conta, Raquel foi montando suas defesas. Não contava nada ao namorado que pudesse trazer qualquer atrito à relação. Por isso nem mencionou o que estava acontecendo no conservatório onde estudava piano. Ao chegar para uma das aulas, apressada - chegar com atraso era um costume irremediável - ouviu a alguns metros da porta um delicioso som de jazz.
"Sabia que Diana Krall combinaria com seu estilo...", disse ela distraída ao passar pela porta. E então se deu conta de que não era sua velha professora que virava para a cumprimentar, mas um jovem que nunca havia visto.
"Olá, tudo bem? A Marta está um pouco doente, vou dar a aula no lugar dela. Meu nome é Indré Anca. Brincadeira, é André Inca. Prazer."
Ok, aquilo era uma surpresa, mas nada de mais. Não precisava ser mencionado. Era irrelevante. Na semana seguinte André anunciou que Marta ficaria afastada mais algumas semanas, mas, passado o susto inicial, aquilo era mais uma coisa a se acostumar.
Susto mesmo ela teve depois de sua primeira aula explicitamente de jazz. Ele percebeu que ela tinha uma queda pelo ritmo e ela já entendera que ele sabia do assunto ao ouvi-lo tocar pela primeira vez. "Me dá seu telefone? Eu queria te convidar para sair", disse André ao fim da aula. Ela corou, disse que não podia e fugiu dali o mais rápido possível.
Minutos depois ela recebeu uma ligação no celular. Era André. A primeira pergunta dela foi como ele havia conseguido aquele número. "Bom, o jazz é caracterizado pela improvisação. Como você fugiu, eu improvisei. Não é lá muito certo, mas peguei seu telefone no sistema de cadastro de alunos. Eu queria mesmo sair com você..."
"Não posso, eu tenho namorado ".
Bom, por aquilo, ele não esperava. Pediu desculpas e desligou, mas algo nela o fazia querer insistir. Nas aulas, sempre que podia, entrava no assunto. Ela não dava brecha, mas parecia se divertir e isso era mais combustível na motivação de André. Ele pediu pra que ela ficasse alguns minutos a mais na aula. "Não posso. É tudo cronometrado", respondeu antes de correr pra casa e ligar, do fixo, para Tato.
André vivia preparando surpresas, por meio de músicas ensinadas em aula cuja letra ia dizendo tudo o que ele não podia expressar. Sem que ela fizesse muito, ele já estava apaixonado. Ela não sabia o que sentia, mas gostava daquilo.
Um dia, tudo fez sentido. Tudo o que as amigas, a irmã, a mãe haviam falado desabou como como tempestade de verão diante de si. Os muros erguidos em torno de sua relação, a prisão na qual vivia fez sentido quando, por acaso ela despertou de um cochilo enquanto Tato tomava banho. Ela havia dormido sobre o celular dele - que sempre ficava em alerta vibratório - e a luminosidade repentina emitida pelo visor a fez acordar. Havia uma mensagem na tela. "Ontem foi maravilhoso. Espero você semana que vem". Ela marcou como não lida e correu rapidamente pelas outras mensagens. Havia poucas, mas deu para entender. Enquanto ela fazia aulas de piano, ele se encontrava com uma garota chamada "Loja de ferramentas". Ao menos era assim que seu nome aparecia nos contatos.
Deixou o celular dele sobre a cama, aberto nas mensagens, pegou suas coisas e saiu.
Poucos minutos depois seu celular começou a tocar, mas ela esperou chegar em casa e ligou do fixo. "Nunca mais me ligue. Acabou."
Bloqueou as ligações de Tato. E resolveu mudar o toque de celular. Escolheu Diana Krall, com I've Changed My Adress. Ela resolveu, aliás, que mudaria outras coisas dali em diante. Resolveu escutar o som da liberdade.

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