segunda-feira, 22 de outubro de 2007

O canalha

— Eu sou um canalha.
A mulher o observava uma expressão de quem tentava dar sentido às palavras, como se tivesse ouvido a frase errada.
— É sério. Eu sou um canalha.
Ainda ligeiramente atônita, ela falou quase como uma língua-de-trapos:
— Co... como ass.. sim? Tá tudo... tá... tá tudo tão... tá bom.
— Justamente por isso. É nossa primeira noite juntos e é bom que você saiba. Apesar de estar tudo muito bom, eu sou um canalha da pior espécie. E amanhã posso estar com outra pessoa. Tô bem te avisando.
— Por que cê tá falando isso? Cê... cê num tem jeito de canalha. Cê é bom...
— É... mas eu preciso ser canalha. E vou ser e sou. Só assim eu serei bom pra você.
— Cê tá louco? Num acredito que cê tá falando isso...
— Só tô falando porque existe algo ainda de bom em mim... uma semente de bondade... e ela me fala pra te avisar... porque na verdade eu sou mal.
A mulher já estava levemente refeita e raciocinava bem, pronta para o embate.
— Pára com isso. Canalha não diz que é canalha. Canalha faz canalhices e some.
— Ok. Se você não quer acreditar, não acredite. Mas que eu avisei, avisei.
— E toda aquela gentileza? E aquele gesto de me dar a mão pra eu descer a escada quando nem nos conhecíamos direito? E a mensagem que cê me mandou uma meia hora depois que fomos embora da festa, toda criativa? Eu até topei te ver ainda na mesma noite! Cê foi me pegar em casa, abriu a porta do carro pra mim... Quem abre porta de carro hoje em....
A pergunta ficou no ar. Foi cortada por ele.
— Tudo encenação. Um homem é capaz de tudo pra conseguir o que quer. E eu te queria.
— (ligeiramente brava) Se era encenação cê merece um Oscar!...
— (rindo) É... tô mesmo pensando em largar essa vida de fisioterapia e me dedicar ao teatro...
— (mais brava) É muita cara-de-pau falar assim na minha cara...
— Você não sabe nem metade da minha cara-de-pau...
— Vamos embora daqui...
Ele terminou de abotoar a camisa. Ela, de calçar as sandálias. Ele a levou pra casa, parou o carro, desceu e deu a volta para abrir a porta para ela.
— Não precisa mais encenar, já teve o que queria -, disse ela ao descer.
— Abri a porta porque gosto mesmo. Ó... desculpa te falar tudo aquilo. É melhor. Mas quero continuar seu amigo.
Com uma cara indignada, ela nem respondeu. Deu-lhe um beijo no rosto e entrou.
Ele foi até o carro. Fechou a porta e ficou um tempo sentado no escuro.
Colocou as mãos sobre o volante e baixou a cabeça entre os braços.
Respirava fundo.
Embora ninguém o visse, estava visivelmente chateado.
Gostava dela, pelo menos o tanto que se pode gostar de alguém em uma noite de festa de aniversário, conversa rápida por telefone, papo em um barzinho, bebidas e cama até as 4h36 da manhã. Justamente por gostar dela, disse o que disse.
Ele não estava preparado para namorar. Não depois de ter sido traído como foi pela namorada de anos. E pelo amigo também. Mas se envolvia casualmente com algumas garotas, sempre com seu jeito gentil e respeitoso. Percebeu que elas se apaixonavam por ele, mas ele não correspondia. Se sentia mal por magoá-las, mesmo que sem querer.
Quando era bom, se sentia um canalha. Um canalha por não corresponder às expectativas que criava, mesmo alertando que não namoraria, que não estava preparado.
Concluiu que a única maneira de mudar isso era fazer com que elas não se envolvessem tanto. Para isso, bastava que fosse um canalha. Ele sofreria. Elas também, mas pouco, uma decepção muito menor do que a de um amor mal correspondido. E decidiu: seria canalha. Só assim, seria bom de verdade.

Um comentário:

manu disse...

muito bom texto. muito bom argumento. embora seja uma história inventada, vivi algo parecido recentemente e sei exatamente o que é isso. infelizmente ele não me disse que era canalha e eu tive de descobrir sozinha.